quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Infância na Pedra Lavrada - Anos 50


Fui menina na Pedra Lavrada
Brinquei na calçada de combinação ...
Cinturão-queimado , cabra-cega ...
Pulei corda , bamboleei ,
dancei frevo , dancei samba
Soltei cebolinhas , chuvinhas e balões,
nas noites de São João.
Apaixonei-me
"Come Prima "
aos 6 anos de idade ...
E com essa idade ,
escrevi minha primeira carta de amor :
"Querido Joaquim"...
(Meu amor platônico).
Esqueci na cartilha do ABC,
e a minha mãe pegou
Ai , que vergonha ...
Tinha opção alem da mentira ?
Culpei uma certa amiga ,
e o meu narizinho cresceu !
Pedalei nas calçadas,
em manhas de sol
Tive falsos crupes
Quebrei três vezes a clavícula ,
torci o pé , outras tantas ...
E eu nem era tão traquina !
Meu corpo se intimidou de medo ,
e nunca mais peraltou !
Na Pedra Lavrada perdi meu avô
Escutei minha mãe parir
Meu pai cantar , assobiar e tomar Brahma
Quis imitar , e ouvi :
"Mulher não assobia ..."
Na Pedra Lavrada dos anos 50
A gente comprava lenha
Comprava leite
Comprava pão ,
pirulitos na tábua ,
cavaco-chinês ,roletes de cana ,
alfenim , macaúba ...
na porta de casa ,
nos carrinhos- de- mão
Tomei injeção no bumbum
de bismuto
com Dona Soledade
E pra completar o tratamento
minha mãe cauterizava minha garganta
com uma solução de "colubiazol "
Comi "crespos" da casa de Dona Santinha
Brinquei de boneca com Nájela ...
E mais outras meninas ...
Próximas ou acanhadas :
Teresa Neuma ( filha de Dona Júlia ),
Valda Farias ( filha de Seu Modesto e Dona Adalgisa),
Irenilde , as meninas de Seu Vicente Chicô :
Lucenir , Sueli , Audeci ...
Cirene de Dona Otília ,
Ziana de Seu Adauto ...
Dólia , Dagmar , Bernadete ...
Lúcia e Joanita Primo .
No quarteirão de cima , os Lemos ...
No quarteirão de baixo , os Siebras ...
No meu quarteirão , o violão de
Vicente Padeiro , e a vitrola do meu pai ,
em toda altura.
Li todos os livros de Dona Liô
Estudei com Dona Neli
Risquei de carvão as calçadas
Fiz vestidos de boneca
Tremi com medo das almas
Acordei com goteiras ,
e a canção da chuva , nas telhas.
Aprendi catecismo no Abrigo das Velhas
Catei carrapetas no parque
Sempre esperando um lobo ,
que nunca veio
Assisti meu primeiro filme no Moderno
Branca de Neve e os 7 anões ... claro !
(O ingresso custava 200 réis)
Meu primeiro livro foi o Patinho Feio
Infância de complexos...
Até descobrir que eu era um cisne ,
foram-se muitas décadas.
Comi chouriço ,
mel de jandaíra,
sequilhos na banha de porco
tripa de porco torrada no jantar
e pudins caramelados ,
sem leite condensado.
Tive tracoma, coqueluche,
febre asiática...
Era um luxo:
tomar guaraná natural
com bolacha creme -cracker
Fomos embalados ,
no ranger do armadores,
vozes entoando samba-canções
ameaçadas pelo bicho-papão e o boi da cara-preta.
Tomamos banho de tina ,
água quebrada a frieza,
com folhas de eucalípto ...
Fazíamos xixi em urinóis
Vestíamos pijaminhas de flanela,
vestidos com sianinha ,
gregas, babados de organdi plissado
sapatos de verniz e meias de seda.
Ouvimos o som do pilão ,
na hora da paçoca ,
que a gente comia com baião
Tomamos água do pote e quartinha
Rezávamos pro anjo-da-guarda, antes de dormir
e acordávamos com o barulho do chiqueiro.
Vi passar uma lambreta
Cantei Celi Campelo
com seus banhos de lua e laços
cor-de-rosa , no cabelo
Comi pão-de-ló
feito por minha avó.
Fumei cachimbos de brinquedo
com folhas secas de alfazema...
(parecia incenso...)
Usei óculos receitados por Dr. Herbert
Acordei de sonhos e pesadelos
Sóbria , ou levemente bêbada ?
Novembro de 2008...
E o tempo voou
Cai no futuro de asas quebradas
Estou viva ...
Embora tenha morrido sete vezes !

8 comentários:

socorro moreira disse...

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...
Socorro Moreira faz um apanhado de uma rua dos anos 50 e todas as ruas do Crato, mudando o nome das pessoas, eram assim. Quando um cineasta quiser retratar a cidade de então, eis um material sem igual para o contexto, o texto e os hábitos humanos. Agora tem uma coisa que Socorro se engana redondamente. Novembro de 2008 de asas quebradas. Não é este o pássaro que vemos passar todos os dias como um condor através das alturas dos Andes, tendo como espelho aqui na superfície do Cariricult.

socorro moreira disse...

Do Vale : Eu não consigo passar por uma só calçada , nas ruas do Crato , sem recapitular o passado. Os detalhes se amiúdam ... as informações borbulham ...Mas eu sinto preguiça !
Hj foi assim . Passei na Santos Dumont , em frente à casa aonde morou D.Zélia e Seu Almir , e lembrei-me de ti.
Fico feliz , quando te vejo no céu das minhas lembranças.

socorro moreira disse...

Dihelson Mendonça disse...
Menina, tu não morre nunca!

Teu sinônimo é Saudade, Saudade, Saudade...

Fiz muita coisa boa também, que depois relato. Mas não foi no Crato.

Bjus!

socorro moreira disse...

Dihelson Mendonça disse...
Eu não sei se classifico o seu texto, lendo e relendo, como um relato, um poema, uma crônica...

Só sei que é tão belo!
Gostaria que o Morais, o Carlos Esmeraldo e outros comentassem algo sobre essa maravilha. Se bem que o nascer do Sol é belo todos os dias, e os homens nem param para comentá-lo.

Bjus!

Dihelson Mendonça

11:33 AM
LUIZ CLAUDIO BRITO DE LIMA disse...
Prezada Socorro, antes de qualquer comentário - não sei se é possível faze-lo, pois diante de tão belo texto fica díficil, ele fala por si só - gostaria de parabeniza-la por tais relatos, ou como diz o querido Dihelson sem saber classifica-lo, entendendo ser um poema,ou uma crônica, ou o próprio relato,essa dúvida centra-se justamente na perfeição em que fora descrito, seus detalhes,suas peculiaridades.Quem de nós não viveu momentos parecidos? Quem leu esse texto e não retrocedeu no tempo, á època do cinema moderno, cassino?Quem não lembra do carnaval de rua?Quem não lembra das chuvas de inverno, que saiamos correndo nas ruas tomando banho de "bica"?Quem não lembra daquele ônibus antigo do colégio municipal Pedro Felício, que ia nos pegar em casa?Quem não lembra da vida, da origem e do espetacular dom de poder ler esse texto e dizer: EU VIVI TUDO ISSO.Há que saudade.....

3:32 PM
A.Morais disse...
Amigo Dihelson.

O texto da Socorro é completo, perfeito, sublime. Ela nao esquece nada. Comparo a "Detalhes" do Roberto Carlos ele tambem não esquece nada. Estou a aguardar o dia em que Ela vai lembrar das tertulias no fim da decada de 60 e começo de 70. Um colega sedia a casa, outro emprestava a radiola de pilhas, as meninas traziam os discos, eram tantos, Os incriveis, Renato, Gerry, Wanderley Cardoso, Erasmo e Roberto Carlos. O que faltava mesmo era coragem para tirar uma colega para uma dança. Corria-se o risco de levar uma tremenda mala. Numa delas, na Vila Silvestre, depois de muita corda dada, um colega foi falar namoro com uma colega. Se aproximou da menina e disse: Eu vi perguntar se voce que namorar comigo porque o Morais e o Jose Flavio mandaram. Ela elegantemente respondeu: volte e diga pra eles que eu não quero. Em cima da mesa um calderão de caipirinha encorajava os marmanjos. Tudo isso sob a supervisão carinhosa e afetiva da dona da casa que não deixava passar das 09 horas.

A. Morais

5:44 PM
Socorro Moreira disse...
Eu digo que fotografei na memória , tudo que vivi ... Atrapalham-se, dentro de mim , as infinitas possibilidades... Por preguiça , estruturo em forma de poema , a mais singela de todas as histórias : as nossas.
Escrevo por impulso. Vislumbro todos os rostos , e pincelo alguns ... Preciso de mais papel ... E alguém que conte por mim.
Nasci em agosto de 1951. Deixei o Crato em agosto de 1975. Retornei no ano 2000. Durante 25 anos , morei em diversos pedaços do Brasil ... Mas não existe lugar mais bonito do que a Chapada do Araripe.
Minha formação literária é limitada ... Ah , se eu pudesse contar ...
Outra limitação é a insaciável vontade de viver o presente. Portanto não me julgo saudosista ... Quero apenas registrar um Crato que ainda existe , e lembrar pessoas , que nunca morreram.
Eu deveria ter começado tudo , quando a minha mãe se encantou pelo meu pai , e desse casal fui projeto !
Começar tudo dos anos 40 ... Porque nessa década fui plasmada , até chegar... até ficar... é no Crato , minha última morada !
Agradeço a atenção e carinho de vocês ... isso é estímulo !

jose hamilton disse...

Socorro, Talvez você não saiba o itenso bem que causa aos que viveram no Crato nessa época, e têm a oportunidade de, por meio de sua inspiração e sensibilidade, recordar e reviver momentos de ternura e enlevo.Depois de tão merecidos elogios, eu lhe dedico, modestamente, minha sincera admiração. josé hamilton de lima barros

socorro moreira disse...

Magali de Figueiredo Esmeraldo disse ...

Olá Socorro
Pedi a Dihelson o seu e-mail, pois estava querendo lhe parabenizar pelo seu Blog e pela sua linda poesia sobre a"Infância na Pedra Lavrada Anos 50". Avisei a Valda e ela disse que se emocionou
muito com a leitura.Não coloquei comentário na sua poesia, pois hoje é que estou estreando o meu
e-mail.Lendo sua poesia lembrei também quando você morou perto da Igreja de São Vicente e que
pulamos corda e brincamos de macaca.Também lembro com carinho de quando estudamos no Instituto São Vicente Férrer e no Colégio São João Bosco. Nunca esquecemos esses bons momentos o que nos mostra que a amizade continua apesar da distância.
Abraços.


Oi, menina !


A gente pensa que ninguém ler , aquilo que escrevemos e postamos nos Blogs.
Eu , você , Valda e Francíria , estudamos juntas no curso primário ,
ginásio e pedagógico. Temos inúmeras lembranças conjuntas , e laços de
amizade indestrutíveis !
Sabe o que acabei de lembrar ?
Não perdíamos um programa de auditório , na Rádio Educadora , e
num dos tais , você foi eleita pelos jurados , como a menina que
tinha o cabelo mais bonito de toda a platéia. E era mesmo ! ( risos).
Qualquer hora dessas , conto as nossas histórias .


Grande abraço !

socorro moreira disse...

Heladio Duarte disse...
Parabéns Socorro

Uma pessoa possuidora de uma memória fotográfica e uma sensibilidade ímpar, é uma dávida do Criador. Prossiga na sua missão terrestre.
Heladio Dduarte

socorro moreira disse...

Walda de Farias disse ...

Socorro amiga,amei sua poesia sobre nossa infância e nossa rua.Tempo inesquecível,tudo muito simples, mas, o que reinavamesmo era a felicidade e alegria em nossos corações. Bjinhos da Walda.